domingo, 12 de janeiro de 2025

O CENTRO ESPÍRITA: O QUE PENSOU KARDEC

            

        

Representação gráfica de uma sessão na SPEE (créditos: CCDPE-ECM)

Por Jorge Luiz

             Em Salvador, 1865, foi fundado o primeiro centro espírita no Brasil, por Luis Olímpio Teles de Menezes, denominado Grupo Familiar do Espiritismo. Teles ficou conhecido pelas polêmicas travadas pelos representantes locais da Igreja Católica. Em 1866, Teles publicou O Espiritismo – Introdução ao estudo da doutrina espirítica, a partir de extratos de O Livro dos Espíritos. Somente sete anos depois (1873) irá surgir no Rio de Janeiro a segunda instituição espírita – O Grupo Confúcio, que foi o responsável pela primeira tradução das obras de Allan Kardec.

            Interessante notar que em 1884 irá surgir a Federação Espírita Brasileira (FEB), com a feição de centro espírita e não com a que se conhece nos dias atuais, afirma o sociólogo brasileiro Emerson Giumbelli.

         Diante dos conflitos que surgiram entre os centros espíritas na capital do Império, os espíritas passaram a ser estudados como “científicos” ou “intelectuais” e, de outro, “religiosos”, “místicos” ou “evangélicos”, diz Giumbelli. A partir desses conceitos, são introduzidos na dinâmica das atividades espíritas o magnetismo e a homeopatia, o que levou os espíritas serem acusados, e alguns condenados por curandeirismo. Esses atropelos foram determinantes para que O código penal de 1890 criminalizasse as práticas espíritas, fato que forçou os adeptos a apresentar o Espiritismo como religião para se abrigarem na Constituição Federal, segundo Giumbelli. O “diálogo sincrético” aprofundou-se com o predomínio dos “místicos”, liderados pelo Dr. Bezerra de Menezes, que introduziu o estudo das obras de Jean-Baptiste Roustaing na FEB.

         Diante desse cenário, é fácil de se constatar que as instituições espíritas foram fundadas de acordo com a concepção pessoal de seus idealizadores, predominantemente, com a feição religiosa.

         Allan Kardec, na Constituição do Espiritismo, publicada na Revista Espírita de 1868, e em Obras Póstumas, acrescidos de comentários que ele realizou antes de morrer, apresenta considerações que são subsídios para a formação de um grupo espírita. No capítulo XXXI de O Livro dos Médiuns, Kardec elabora orientações dirigidas às sociedades espíritas, no quesito das reuniões mediúnicas, de maneira específica. Em Viagem Espírita de 1862, Allan Kardec apresenta um modelo para criação de uma sociedade espírita.

Vamos a algumas considerações importantes sobre o seu pensamento para o funcionamento de um centro espírita:

a)    Na Constituição do Espiritismo, Kardec concebe o tipo de gestão administrativa, baseada em uma comissão central, dessa forma ele elimina a figura de “chefe do Espiritismo”, ou seja, um presidente. A comissão seria constituída de no máximo 12 membros, com rodízio anual, sendo fiscalizada pelas assembleias gerais. Curioso esse aspecto. Muitos espíritas, avessos à política, a partir do modelo de gestão hierarquizado, institucionalizou e partidarizou o centro espírita, o que fez nascer várias dissidências; ânsia do personalismo.

b)    Falando aos espíritas de Lyon e Bordeaux, em Viagem Espírita de 1862, Kardec apresenta sugestão de criação de uma sociedade espírita e interdita as questões políticas, de economia social, bem como as controvérsias religiosas. Essas interdições são compreensíveis pois advinham do Império a proibição de assembleias que contemplassem a discussão de temas relacionados às questões políticas e de economia social.

Kardec, também, interdita a prece inclusive o Pai Nosso, para as reuniões públicas, ficando-a permitida nas reuniões internas (mediúnicas e de trabalhadores).

c)    No Projeto 1868, Kardec ressignifica as funções do centro espírita. É importante ressaltar que o livro Obras Póstumas foi publicado, como o próprio título insinua, postumamente, em 1890. Esse projeto é apenas um esboço das ideias que ele iria desenvolver, encontrado em suas anotações, e publicado pelos dirigentes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Leia-se:

“A sociedade tem necessariamente que exercer grande influência, conforme o disseram os próprios Espíritos; sua ação, porém, não será, em realidade, eficiente, senão quando ela servir de centro e de ponto de ligação donde parta um ensinamento preponderante sobre a opinião pública.

            Essa correção de Kardec, quanto à função e ao significado do centro espírita, abre um leque amplo para as diversas cogitações. Embora presente no vocabulário do vulgo, o seu conceito clássico de opinião é sujeito às diversas matrizes das ciências, e nesse aspecto, evidencia-se o conceito dialético do Espiritismo, em que se desinterditam as questões políticas (não partidárias) e as da economia social. Para reforçar a visão de Kardec, considerável trazer a lume o significado de preponderante; no sentido figurado, “tem mais influência que outro”; etimologicamente vem do latim praeponderare, cujo significado, segundo o dicionário Larousse: “que tem mais importância, autoridade, peso, influência ou força que; predominar.” Ao se realizar pública, no mesmo dicionário, tem-se: “a totalidade ou a maioria das ideais e opiniões de um grupo social, questão.” (grifos nossos). O centro espírita, portanto, não é um reduto de pedintes das ações dos Espíritos sobre as questões do mundo. As ações do Espiritismo e dos espíritas no mundo são políticas, e assim têm que se desenvolver, não as deixando ao sabor de opiniões pessoais que destoam do pensamento de Kardec e dos Espíritos.

            A opinião tem a sua gênese na faculdade sagrada do Espírito que é a de pensar. Allan Kardec assinala que “o pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria; sem o pensamento, o Espírito não seria Espírito.” Tendo como força motriz a vontade, o pensar se torna uma arte que não se pode deixar levar pela opinião pública, mas é necessário entendê-la e ressignificá-la segundo os fundamentos espíritas. É estar no mundo, sem ser do mundo. (Jo, 15:19). O cristão tem que ser um crítico do mundo.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), importante filósofo francês, em seu Contrato Social, quando fala da divisão das leis que ordenam a coisa pública, divide-as em quatro. As três primeiras são as políticas, sociais e criminais. A essas, ele acrescenta a mais importante que não se grava nem no mármore nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos. Diz Rousseau:

“Falo dos usos, dos costumes, e em especial da opinião, parte desconhecida dos nossos políticos, mas da qual depende o êxito de todas as outras; parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se a regulamentos particulares, que outra coisa não senão o cimbre da abóboda, cujos costumes mais lentos no nascer compõem, enfim, a chave imutável.”

            O contrato social, para Rousseau, é um acordo entre indivíduos para se criar uma sociedade, e só então um Estado, isto é, o contrato é um pacto de associação, e não de submissão. Este livro influenciou diretamente a Revolução Francesa e os rumos da história.

            Allan Kardec sofre a influência rousseauniana através do pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi, seu mestre no Instituto de Yverdon. A professora Dora Incontri considera Rousseau avô espiritual de Allan Kardec.

            John Locke (1632-1704), filósofo inglês, considerado o principal teórico para a constituição do contrato social de Rousseau, assim divide as leis para que se julgue as ações respeitosas ou pecaminosas: Lei Divina, Lei Civil e Lei de Opinião.

Contextualizar Kardec, historicamente, é fundamento maior para se entender as suas ideias.

Inútil se afirma aqui delinear comentários sobre a dinâmica das atividades do centro espírita, fecundo em misticismo, rituais, igrejismo, o que não contribuiria em nada. 

É notório que a opinião pública à época de Kardec não tinha a conotação dos dias atuais, sempre atrelada à comunicação de massa. Fernanda Vasques, em artigo acadêmico, citando Cervellini, Figueiredo, assim esclarece:

“Naquele contexto (séc. XIX, a opinião pública era encarada com base de legitimação da democracia (contratualismo) e o requisito básico para tal seria a existência de uma deliberação racional, exprimindo um interesse geral resultante.”

            Para os espíritas confessionalmente avessos à política, é um convite a rever seus conceitos, considerando que os fundamentos da democracia estão consolidados no evangelho de Jesus. A exemplo da relação da Doutrina e o progresso da Ciência, o centro espírita também deve progredir de acordo com os movimentos das opiniões dos indivíduos e das coletividades. Fica evidente a função e o significado do centro espírita, longe do modelo que se realiza no movimento espírita brasileiro, imutável, o qual já comemora 159 anos. Para uma doutrina progressista, esse modelo já pode ser considerado jurássico.

            Vasques torna mais compreensível esse aspecto: “O desenvolvimento da democracia grega tem a ver com a realização de deliberações dos cidadãos na ágora, espaço da polis grega. Essas deliberações consistiam no debate de ideias e, consequentemente, na formação de opinião. O centro espírita aqui ganha feição da ágora grega.

            Os aspectos até aqui expostos configuram que as dinâmicas das atividades espíritas deveriam se inspirar em um método dialético com a sociedade, como esclarece Manuel Porteiro (1881-1936), profundo pensador e escritor espírita, ao ensinar que é preciso ver, nos indivíduos, não agentes desvinculados completamente uns dos outros, mas unidos por vínculos afetivos específicos, relacionados entre si pelo meio social e geográfico, por fatores externos, tanto de ordem material como espiritual; não é crer que a sociedade, com seu determinismo econômico e histórico, marcha por um lado e o espírito humano, com seu determinismo psicológico, com sua causalidade moral e espírita por outro.

            Já Herculano Pires (1914-1979), professor e filósofo espírita, dialogando com Porteiro, assinala que:

“A concepção dialética do Espiritismo não se funda no exame das contradições superficiais do mecanismo social. Aprofunda-se no exame do dinamismo complexo das ações e reações dos indivíduos e dos grupos sociais que estruturam a sociedade. Reduzir toda essa complexidade às manifestações efêmeras dos estágios evolutivos de uma sociedade é negar ao homem a possibilidade de lutar para compreender os problemas com que se defronta no processo existencial.”

            O movimento dos espíritas “progressista”, pelo qual me situo, tem possibilitado o debate nessas direções, através de autores como Manuel Porteiro, Cosme Mariño, Humberto Mariotti, Herculano Pires, Eusínio Lavigne, reeditados pela Editora Comenius. Nesses dias,  possibilitou-se o direito de vozes no espaço social acerca das questões sociais que tocam o Espiritismo e os espíritas, na condição de cidadãos.

            Tinha bastas razões Herculano Pires quando afirmou que “se os espíritas soubessem o que  é o Centro Espírita, quais são realmente a sua função e a sua legitimação, o Espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra.”

            O tema é de uma largueza filosófica imensa, e claro, não se encerraria em uma resenha leiga como esta.

            Que se procure aprofundar a temática que se revela por demais apaixonante.

 

Referências:       

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

INCONTRI, Dora. Para entender Kardec. São Paulo: Lachâtre, 2004.

KARDEC, Allan. Obras póstumas. Brasília: FEB, 1987.

_____________. O livro dos médiuns. São Paulo: EME, 1996.

_____________. Revista espírita – dezembro de 1864 – Brasília: FEB, 2004.

PIRES, J. Herculano. O centro espírita. São Paulo: Lake, 1990.

PORTEIRO, Manuel. Espiritismo dialético. São Paulo: Comenius, 2023.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. E-book.

 

SITE:

http://opiniaopublica.ufmg.br/site/files/artigo/7-Janeiro-15-OPINIAO-Fernanda-Vasques-Ferreira-H-A.pdf.

 

           

           

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