Por Marcelo Texeira
Recebi de um amigo espírita progressista, por uma rede social, um link de acesso a um vídeo de uma instituição espírita. Nessa postagem, um menino de aproximadamente 10 anos recitava não um poema, mas um texto (talvez decorado) com as costumeiras críticas que os espíritas fazem ao carnaval. Tratava-se de uma narrativa dentro dos padrões conservadores, que atribuem ao carnaval toda sorte de desequilíbrios espirituais. Detalhe: o menino era negro.
Incomodado com o que acabara de assistir, compartilhei o vídeo com diversos amigos espíritas igualmente progressistas e constatei que não fui o único a não gostar da publicação. Voltei, então, ao perfil da instituição e postei, nos comentários, uma crítica construtiva. Disse que deveríamos ter cuidado com os argumentos então apresentados porque, hoje em dia, devido ao progresso que temos vivido no tocante às questões raciais, as reprovações apresentadas tinham nome: racismo religioso. Acrescentei que a questão se tornava mais grave pelo fato de o texto estar sendo dito por um garotinho negro, ou seja, alguém que desconhece a história da África, bem como a própria ancestralidade. Afinal, o carnaval, principalmente no tocante aos desfiles das escolas de samba, é uma forte manifestação da cultura africana e sua resistência ante os vários embates que travou (e ainda trava) para vencer preconceitos. Foi um comentário fora da curva, já que a maioria deles dizia que o menino era uma gracinha, que demonstrava maturidade apesar da pouca idade, que era lindo ver uma criança dizendo um texto tão complexo etc.
Só que começaram a curtir o meu comentário. Várias curtidas, aliás. Desliguei-me do assunto e fui cuidar dos meus afazeres. Tempos depois, fui dar uma olhada na página da instituição. Não consegui mais acessá-la. A princípio, pensei que eu havia sido bloqueado. Lamentei, pois queria reproduzir textualmente a fala do menino neste artigo. Pedi, então, que alguns dos meus amigos fizessem a gentileza de acessar o perfil, digitar o texto do garoto e me enviar. Não conseguiram acessá-lo também. Deduzi, então, que ele havia sido tirado do ar. Devem ter caído na real depois do meu comentário. Se foi esse o motivo, tanto melhor.
O carnaval é um antigo alvo do movimento espírita. Talvez pelo fato de haver um livro chamado Nas fronteiras da loucura, que detalha a pesada atmosfera espiritual durante um desfile na Av. Marquês de Sapucaí. Como a obra, ditada pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda, é do início da década de 1980, o que é apresentado tem a ver com a época, já que, por exemplo, cita também os então célebres desfiles de fantasias luxuosas, que ocorriam em seletos clubes do Rio de Janeiro e que, com o tempo, caíram em desuso.
Os desfiles de escolas de samba da Cidade Maravilhosa passaram, na mesma década, por profundas mudanças. O Sambódromo, monumental obra do arquiteto Oscar Niemeyer encomendada pelo então governador Leonel Brizola, abriu as portas para as escolas de samba no carnaval de 1984. Antes, as arquibancadas eram montadas e desmontadas. Uma despesa anual e onerosa.
Anteriormente ao Sambódromo, outro fator já havia contribuído para transformar os desfiles em algo não só suntuoso, mas também sensual: o trabalho do carnavalesco Joãozinho Trinta. Então à frente da escola de samba Beija-flor, da cidade de Nilópolis, ele realizou desfiles repletos de nudez, no que foi seguido por muitos de seus colegas de ofício nos anos subsequentes. Acrescente-se a isso o constrangedor hábito que vários passistas, ritmistas e afins tinham de fazer gestos obscenos frente às câmeras de TV. Nas fronteiras da loucura retrata muito bem o denso ambiente espiritual que então se formava, bem como os trabalhos realizados por um grupo de socorristas desencarnados.
Essa realidade espiritual no entorno do Sambódromo ainda deve ocorrer? Talvez. Afinal, o carnaval é uma festa historicamente alheia à religião e que dura, oficialmente, quatro dias. No Nordeste, inclusive, a folia se estende para além desse período em cidades como Salvador, Recife e Olinda, embora, nesses locais, não seja o samba que a rege, mas ritmos como axé, frevo e maracatu. Enfim, forma-se provavelmente um ambiente propício aos exageros de toda ordem. Afinal, muita gente aproveita a ocasião para liberar geral, soltar os bichos, tomar todas, enfiar o pé na jaca etc.
Mas aí, indago: será que tudo ligado ao carnaval é passível de crítica negativa? Será que todas as pessoas envolvidas no evento estão sintonizadas com entidades viciadas ou libidinosas? Será que, em todos os desfiles das escolas de samba cariocas, ocorre rigorosamente, até hoje, o que é descrito num livro que já conta com mais de 40 anos? Afinal, estamos ou não submetidos ao progresso incessante?
Tenhamos em mente que a festa emprega muita gente: costureiras, serralheiros, aderecistas, bordadeiras, motoristas, cozinheiros etc. Além disso, grande parte das escolas de samba mantém projetos sociais, que oferecerem reforço escolar às crianças do entorno, além de atividades variadas como aulas de dança e percussão. Uma forma de integrá-las à comunidade e afastá-las da criminalidade, que costuma rondar os socialmente carentes. Isso sem falar no pessoal que aproveita a ocasião para vender água mineral, cachorro-quente, pipoca etc. e garantir um dinheirinho extra… Há também os profissionais de imprensa, segurança, saúde e similares que trabalham no evento. Há ainda as senhoras da ala das baianas, os amigos e familiares que sempre desfilam juntos, a turma afetuosa da velha guarda… Enfim, há todo um viés social, cultural e profissional que une as pessoas e as fazem ser parte integrante do ambiente em que foram criadas ou do meio em que estão atuando profissionalmente. Seria muito precipitado e injusto de nossa parte colocar todo mundo no mesmo balaio dos excessos de toda ordem.
Acrescente-se ainda o fato de os festejos de Momo não serem os únicos que agregam grande contingente de pessoas. Célebres festivais de música como o Rock in Rio (RIR) e o Lollapalooza reúnem milhares de gente. Idem o réveillon na praia carioca de Copacabana; os jogos de futebol e seus vários campeonatos com estádios lotados; a Oktoberfest de Blumenau (SC); a festa dos bois Garantido e Caprichoso, em Parintins (AM); a Festa do Peão de Boiadeiros de Barretos (SP). Isso sem falar nas praias brasileiras, que ficam coalhadas de gente em alta temporada; nas churrascarias repletas de comensais ávidos por comer carne pingando sangue no prato; nos acampamentos golpistas de 2022; na barbárie do 8 de janeiro de 2023, em Brasília, e por aí vai. Garanto que todos esses eventos e locais com gente de tudo quanto é canto carregam (ou carregaram) consigo uma vasta plêiade de espíritos bem apegados a variadas vicissitudes. E garanto também que muitos espíritas marcam (ou marcaram) presença em muitas dessas ocasiões. Por que, então, só o carnaval costuma ser alvo nosso, a ponto, de, em fevereiro, os centros espíritas sempre promoverem palestras prevenindo o público acerca da provável pesada atmosfera psíquica que se forma na ocasião?
São dois os motivos: o primeiro diz respeito à interdição do corpo, ou seja, espiritualizar-se é fugir do que o mundo oferece. Nesse sentido, recomendo o brilhante artigo “O espírita, a interdição ao corpo e o carnaval”, de Pedro Camilo (vide bibliografia). Pedro observa, entre outros fatos, que muita gente exagera na comida, no palavreado chulo, no rancor, na agressividade, na bebida etc. durante o ano inteiro e em festas como Natal e Ano Novo para, no carnaval, dar uma de espiritualizada. O segundo motivo é cruelmente simples: o carnaval é desconsiderado pelos espíritas por ser uma festa de preto. E tudo, no Brasil, que é relacionado à cultura negra sempre foi objeto de repressão e perseguição. Falou em gingar, requebrar, batucar ou endeusar divindades como Ogum, Xangô e Iemanjá os branquelos discriminam; espíritas incluídos. O RIR, por exemplo, pode estar com uma atmosfera bem mais carregada que a da Sapucaí. Mas como é evento de classe média, com astros internacionais e voltado para gente branca apreciadora de rock, jazz e world music, sem problemas. E como o espiritismo brasileiro é, em sua maioria, composto de cidadãos brancos de classe média, tudo resolvido. Condena-se apenas o carnaval e segue o barco.
Muitos possivelmente irão alegar que o carnaval é um evento pouco recomendável devido à sua ligação com a contravenção (jogo do bicho). Abro um parêntesis para explicar que o jogo do bicho foi inventado no início do século 20 pelo Barão de Drummond para gerar renda extra e ajudar na manutenção do zoológico por ele aberto no bairro carioca de Vila Isabel. Quem fosse até o local apostava um dinheirinho nos números equivalentes a esse ou aquele animalzinho do zoológico. Se acertasse, ganhava uns cobres. Como o jogo era acessível e se popularizou, foi tachado de ilegal pelas autoridades. Aliás, tudo que fosse popular e acessível era perseguido, assim como o samba, que acabou fazendo alianças, tempos depois, com o jogo do bicho já estabelecido como contravenção, para poder sobreviver. Quem duvida desse tipo de acordo, preste atenção na política, na qual esse ou aquele governante é obrigado a se aliar a supostos opositores para garantir a tal da governabilidade, entre outros exemplos envolvendo, inclusive, denominações religiosas e o Estado. Fecha parêntesis.
Aconselho aos espíritas que tanto discriminam os desfiles das escolas de samba a prestarem atenção nos enredos que vêm sendo apresentados. É um banho de cultura, apresentando personagens cujas histórias os livros oficiais (escritos por brancos) não contam, bem como fatos cuja importância foi minimizada ou desconsiderada. Além disso, os idealizadores dos enredos sempre fazem uma ponte com a realidade atual, mostrando como avançaremos como nação à medida que valorizarmos e respeitarmos a trajetória e a cultura do povo negro em nosso país. A seguir, alguns significativos exemplos.
Em 2019, a Estação Primeira de Mangueira conquistou o campeonato com o enredo “Histórias para ninar gente grande”, em que a história do Brasil era narrada sob o ponto de vista de heróis negros como Luiz Gama, Luísa Mahin, Dandara e Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 2018. Mostrou também várias revoltas e rebeliões populares lideradas pelo povo preto, pobre e indígena, sempre tão escravizado e relegado a segundo plano.
Falando em Luísa Mahin, ela voltou à Sapucaí em 2024, desta vez pelas mãos da Portela, que apresentou um belíssimo desfile inspirado no livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Publicada em 2006, a obra, tida como uma das 200 mais importantes para se entender o Brasil, conta a história de Kehinde (Luísa Mahin), uma mulher que foi escravizada aqui no século 19, voltou para a África e resolveu retornar, já idosa, cega e cansada, para tentar encontrar o filho perdido aqui há décadas (Luiz Gama). A autora desfilou juntamente com várias e importantes figuras negras do país. O impacto foi tão grande que, nos dias subsequentes, o livro esgotou.
Ainda em 2024, a Paraíso do Tuiuti entrou na avenida mostrando a Revolta da Chibata. Nela, marinheiros negros do inicio do século 20 rebelaram-se por estarem sendo submetidos a uma série de maus tratos. Liderados por João Cândido Felisberto (que recebeu a alcunha de Almirante Negro), tomaram os navios em que estavam, na Baía de Guanabara, exigiram tratamento humano e apontaram os canhões para o Rio de Janeiro. Do alto de um dos carros alegóricos, representando João Cândido, o jovem Max Ângelo dos Santos, que, meses antes, havia sido vítima de racismo no bairro carioca de São Conrado. Foi “chibatado” com uma coleira por uma mulher racista. Uma sacada e tanto da Tuiuti para dar uma aula de cidadania e representatividade.
Nesse mesmo ano, tivemos a retumbante Acadêmicos do Salgueiro denunciando o massacre do povo Ianomâmi e o assassinato dos ambientalistas Bruno Pereira e Dom Philips, ocorrido em 2022 no Vale do Javari (AM). Um enredo com uma força descomunal, que mostrou a indiferença do homem branco, bem como a hipocrisia e o desdém com que, geralmente, a questão indígena é tratada. O samba é espetacular!
Por fim, em 2022, a Acadêmicos do Grande Rio, do município de Duque de Caxias, sagrou-se campeã com um surpreendente enredo sobre Exu, entidade da umbanda e do candomblé que muitas pessoas creem ser o equivalente à figura do demônio da tradição cristã. Só que, como mostrou muito bem a Grande Rio, não existe, nas religiões de matriz africana, uma figura que represente o mal, como Satanás, Capiroto, Cramulhão, Tinhoso ou outro nome que costumam dar. Exu é simplesmente o primeiro dos orixás, o guardião de todos. A divindade que abre os caminhos e leva prosperidade e fartura para a mesa dos fieis. O banho de conhecimento foi tão grande que reverbera até hoje.
Carnaval, como bem observa o comentarista Milton Cunha, é “o desfile da inteligência negra periférica”. Uma inteligência que o preconceito e a exclusão social tentaram sufocar, mas que se sobressaiu por meio da arte e produziu essa festa que é a maior vitrine cultural do Brasil para o mundo.
Pensemos nisso quando nos referirmos ao carnaval; aprendamos a contextualizá-lo pela ótica da cultura e da história e valorizemos o ziriguidum! Ele é brasileiro e é nosso!
BIBLIOGRAFIA:
1. CAMILO, Pedro. O espírita, a interdição ao corpo e o carnaval. Disponível em: https://blogabpe.org/2017/02/19/o-espirita-a-interdicao-ao-corpo-e-o-carnaval/
2. CUNHA, Milton. Enredo e samba: Salgueiro homenageia povo Ianomâmi e faz alerta pela Amazônia. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2023/12/21/enredo-e-samba-salgueiro-homenageia-povo-yanomami-e-faz-alerta-pela-amazonia.ghtml
3. FERNANDES, Nayara. “Um defeito de cor”: conheça livro homenageado no samba-enredo da Portela. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2024/02/13/um-defeito-de-cor-conheca-livro-homenageado-em-samba-enredo-da-portela.ghtml
4. FRANCO, Divaldo Pereira. Nas fronteiras da loucura, Livraria Espírita Alvorada Editora (Leal), 3ª edição, 1982, Salvador. BA.
5. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor, Editora Record, 1ª edição, 2006, Rio de Janeiro, RJ.
6. MAIA, Luíza. Entregador que levou chicotadas em 2023 vive João Cândido na Sapucaí. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/entregador-chicotadas-vive-joao-candido-sapucai
7. MENDONÇA, Alba Valéria. Conheça os heróis citados no samba e no enredo da Mangueira no carnaval de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2019/03/08/conheca-os-herois-citados-no-samba-e-no-enredo-da-mangueira-no-carnaval-de-2019.ghtml
8. REDAÇÃO DO DIÁRIO DO NORDESTE. Enredo da Grande Rio desmistifica Exu na Sapucaí: saiba quem é o Orixá. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/entretenimento/zoeira/grande-rio-desmistifica-exu-na-sapucai-saiba-quem-e-o-orixa-1.3221794
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