quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

TATAMES ESPÍRITAS

 

 Por Marcelo Henrique

Tatames representam lugares seguros, confortáveis, tranquilos, sem ameaças, para vivermos em nossas zonas de conforto. Neles, estão presentes algum indivíduo “mais estudioso”, pronto para lhe dar uma “mágica” explicação para os seus problemas, dando uma “razão palatável”, uma “tábua de salvação”, uma “pílula para dourar os dias”, fazendo com que as pessoas se conformem às condições desafortunadas, precárias, infelizes ou difíceis com que convivem.

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O tatame, originalmente

Você sabe o que é um tatame, certo? Mesmo que não seja afeto a modalidades esportivas, como praticante, esportista ou mesmo telespectador de competições mundiais, como os jogos panamericanos ou as olimpíadas, quase sempre associado às lutas, você certamente conhece o objeto.

Mas, também tal componente, com outra composição e finalidade, geralmente trazendo motivos infantis (desenhos coloridos, letras, números…), serve para que crianças em tenra idade possam engatinhar e se sentar, deitar e rolar, sem risco de se machucarem, para brincar minutos e horas a fio.

Nos círculos presenciais e, mais notadamente na atualidade, nos virtuais, com ampla interação entre pessoas distantes fisicamente e espalhadas por cidades e até países muito distantes entre si, é comum encontrarmos essa “figura”: os tatames.

Nossos tatames cotidianos

Eles podem pertencer a segmentos muito específicos, como um grupo de familiares, amigos, colegas de trabalho ou membros de corporações ou ambientes corporativos (advogados, médicos, professores…). Os tatames, assim, representariam o entendimento majoritário, o senso comum, ou a visão (mais ou menos) uniforme e tradicional sobre determinadas temáticas. Um consenso preestabelecido que difícil ou raramente comporta discussões e alterações do entendimento patente e consagrado.

Você já não passou por isso? Isto é estar diante de “verdades consagradas” e indiscutíveis e imutáveis?

Até mesmo em círculos mais especializados, como os acadêmicos, profissionais e científicos, a ruptura com o padrão e a aceitação de novas ideias (teses) é um processo trabalhoso e difícil, justamente porque as crenças entronizadas e enraizadas nas mentes e nas convicções individuais são uma barreira (quase) intransponível.

Em outras palavras, é preciso tempo – produto, aliás, bem escasso na vida agitada do nosso cotidiano – e maturação consciente para que conceitos construídos e consolidados por anos e décadas sofram alguma mutação progressiva. E isto, claramente, só irá decorrer de uma decisão voluntária e pessoal em que o livre arbítrio e a consciência racional são dois elementos inafastáveis.

E não é porque seja em sede das ciências que vamos encontrar indivíduos prontamente abertos à revisão de seus posicionamentos. Em nossa larga e longa carreira acadêmico-profissional, em distintas universidades, programas e áreas, já convivemos com cientistas e professores, advogados e juízes, empresários e administradores públicos, bastante refratários a novas abordagens e à modificação de suas (cristalizadas) convicções. Não deveria ser, mas é. E ocorre bastante.

Os tatames espíritas

Chegamos, então, ao cenário espírita e à ambiência comum e tradicional, seja qual for a localidade, a organização social e a estrutura. E isso é preocupante!

Porque a Filosofia Espírita, tal qual concebeu Allan Kardec, não se presta a ser, nos grupos e instituições que se organizam em torno dela, um locus onde existam parâmetros definitivos e imutáveis, cláusulas pétreas ou crenças (entendimentos) dominantes e dogmáticos. Sem tatames, portanto.

Até é natural, pela forma como se consolidaram e se estabeleceram as associações espíritas, e como se popularizou o Espiritismo no Brasil, em torno do conceito e da vigência de uma RELIGIÃO – mesmo que sem a maioria das características comuns de uma igreja – e da prática religiosa (porque os espíritas em geral, ao serem perguntados sobre qual religião possuem, respondem Espiritismo), que fosse sendo estruturada e consolidada uma postura “engessada” em torno dos conceitos de “verdades” (no caso, aqui, verdades religiosas para além das científicas ou filosóficas).

Sim, porque as filosofias e ciências – diversamente das religiões – embora todas elas sejam, sem exceção, CONSTRUÇÕES HUMANAS, estão mais propícias à revisão de suas estruturas, ideias e conceitos, permanecendo, no entanto, aquilo que chamados de princípios essenciais ou fundamentos axiológicos. E o Espiritismo, encarado, aceito e vivenciado como religião, possui enormes e abissais dificuldades de repensar conceitos e se reinventar.

O porto seguro inexistente

Com isso, o meio espírita vai continuando a cativar e manter adeptos que buscam um “porto seguro”, ou, como ilustra o título de nosso ensaio, um tatame, lugar confortável, seguro, circunscrito, sem ameaças e ideal para as conformações do viver – por vezes chamados de consolos – baseados na (única e indiscutível) opinião sobre os atos da existência. Uma verdadeira zona de conforto!

Assim, por exemplo, uma criança nasceu com alguma deficiência? Vem o “Espiritismo” e “explica” que ela pode ter feito algo muito ruim no “passado” – como agredir e provocar danos físicos a alguém – e retorna para “compensar” esse fato, na própria pele. E se alguém perdeu o emprego? É porque em “outra vivência pregressa”, “abusou” do dinheiro e agora vem com essa “paga”. Se fez um casamento “ruim”, com um cônjuge difícil, é porque “tratou mal” seu(ua) companheiro(a) na “vida anterior”. Se tem um filho, irmão, pai, mãe cujo relacionamento é “complicado”, isto deriva de, “numa outra encarnação”, os papéis estiveram invertidos e o que hoje experimenta, causou dissabores para outrem.

E assim seguem as “crenças” (ditas) espíritas…

Perceba: no seu grupo ou instituição espírita sempre haverá um “mais estudioso”, um dirigente, um palestrante, um médium que lhe trará uma “mágica” explicação para os seus problemas, dando uma “razão palatável”, uma “tábua de salvação”, uma “pílula para dourar os dias”, fazendo com que as pessoas se conformem às condições desafortunadas, precárias, infelizes ou difíceis com que convivem. Não é?

Não é – e não pode ser – assim! O indivíduo não vem para mais uma experiência encarnatória com um “guizo”, uma “tabuleta”, um “plano de voo”, um “roteiro existencial” totalmente pré-traçado e imutável. Do contrário, mesmo que hajam situações anteriores, desta vida ou das que já se encerraram, que possam ser utilizados na composição das situações da vigente encarnação, projetando aquilo que a Filosofia Espírita conceitua como “expiações”, “provas” ou “missões”, não há nenhum “trilho de trem” obrigatório e definitivo por onde irão transitar as almas.

Não existem, portanto, tatames espíritas, capazes de fortalecer, embasar e vincular restritivamente a lógica pensante e argumentativa sobre os atos da vida, as relações interpessoais e as experiências humanas. Longe disso.

 O bom da vida

Os dias se sucedem como oportunidades ímpares, únicas, inigualáveis. E, em cada um deles, infinitas situações se nos apresentam, não para nos condicionarmos numa “zona de conforto”, num “cercadinho”, num “casulo” ou numa “redoma de vidro”, composta por nossas crenças vinculantes, por ideários sugeridos por outrem (pode até ser a explicação contida no romance tal, assinado por um venerável Espírito ou a fala de um empolgado e reconhecido palestrante) e por explicações “fáceis” e padronizadas para as “dores” humanas.

Para viver é preciso… correr riscos! Exercitar o raciocínio aplicado, vincular a teoria espírita à prática cotidiana – sem qualquer “medo” de descobrir que um texto escrito na parte final do Século XIX, esteja “defasado”, “superado”, “descontextualizado” para o presente, ou o mundo, as sociedades e as pessoas tenham progredido. Este é o bom da vida!

O Espiritismo o que é, então?

Mesmo que a Doutrina seja dita como “dos Espíritos”, porque representou a associação entre os conceitos dos desencarnados e dos encarnados – em especial, o autor das obras, Allan Kardec – ela representou, naquele ponto originário, o ponto de vista pessoal (opinião) de uns e de outros para dados contextos). E segue sendo assim, com as contribuições atuais de escritores, médiuns e dos Espíritos que transmitem suas mensagens. Não foi, o Espiritismo, concebido para ser imutável, perfeito nem definitivo. Ele se constrói todos os dias, principalmente pelo uso da inteligência racional e do bom senso para analisar a si mesmo, os outros e a Humanidade.

O Espiritismo segue como uma indicação, uma proposta de autoexame e de análise das situações da vida, uma perspectiva a ser racionalmente estudada e compreendida, associando as teorias com as vivências. E, também, compreendendo as duas ambiências, a física e a espiritual, a dos encarnados e a dos desencarnados, em permanente sinergia e interrelação.

Sem meias nem definitivas verdades. Um processo permanentemente em construção, com as “ferramentas” de que dispomos para viver a vida plenamente.

Que tal sair do tatame?

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